Havia cheiro de morte.
A cela em que se encontrava tinha um forte odor de morte. Estava muito escuro, uma vez que a cela não tinha qualquer contato com o mundo exterior, mas estava ali há tanto tempo que seus olhos já estavam acostumados com a ausência de luz. A cela não era muito grande, tinha o teto abaulado e paredes maciças, tudo feito de pedra bruta. Não tinha piso nenhum, o chão era todo de terra, uma terra escura e estéril, por onde muito sangue já havia escoado durante os anos que se passaram desde que a cela fora criada para o triste fim da tortura.
Suas mãos estavam presas por uma pulseira de aço muito apertada no punho, o que machucava profundamente a junção entre os braços e o início da palma das mãos. As pulseiras por sua vez estavam unidas a grossas correntes que, passando por argolas afixadas em lados opostos da cela, estendiam seus braços e chegavam até um mecanismo rudimentar que se encontrava preso ao chão, atrás dele.
De braços abertos, mas não totalmente estendidos, seu corpo exausto e totalmente esgotado pendia para frente, com sua cabeça tombada para baixo, e seus cabelos, agora crescidos, sujos e desgrenhados, caiam-lhe sobre o rosto imundo. Um fio de saliva e sangue, espesso e denso, descia de sua boca e não chegava a tocar a terra, estendido como uma espécie de pêndulo orgânico. O corpo estava quase totalmente suspenso, e seus pés mal chegavam a tocar o chão, o que fazia com que todo o peso de seu corpo, já um tanto definhado, porém ainda muito pesado, fosse sustentado pelas pulseiras de aço, forçando insuportavelmente seus punhos.
A dor, no entanto, já não era mais um problema, seu corpo estava completamente sedado, anestesiado, seus músculos e sua pele já não sentiam nada e sua convicção não tinha mais qualquer força sobre sua mente, já totalmente extenuada. A escuridão era opressora, mas ao mesmo tempo era libertadora: enquanto a cela estivesse escura, ele estaria em paz. Enquanto estivesse ali abandonado, não haveria tortura em seu corpo, mas principalmente não haveria o terrível tormento psicológico, não o forçariam a dizer o que não sabia, o que não entendia mais, nem a assumir a culpa por algo que ele não havia feito.
Seu corpo estava amortecido e sua mente vagava por terras inexploradas e desconhecidas, mas ele não estava dormindo, era mais como uma espécie de desmaio extremo, algo próximo ao coma. Todo o seu corpo e toda a sua mente tinham desistido de lutar, de buscar forças. As últimas sessões de tortura haviam quebrado várias de suas costelas, distendido todos os músculos de um ombro a outro em suas costas e também a junção dos cotovelos, e o chicote havia rasgado em vários pontos a pele da sua lombar. A sua situação era realmente deplorável, mas já não pensava mais se poderia se recuperar e voltar a sua vida normal, como uma pessoa normal, isso agora era algo muito distante e irreconhecível, totalmente irreal para ele. Só o que havia era essa cela fétida, sua vida agora eram essas correntes, o corpo nu e destroçado e o sangue que corria por toda a sua pele misturando-se a toda a podridão e imundície que cobria o seu corpo.
Não saberia dizer a quanto tempo estava preso ali, foram tantas visitas de seus carrascos que pareciam ter se passados semanas, talvez meses, e não duvidaria se dissessem ser anos. A falta de contato com o mundo exterior, sem sequer um fio de luz do dia, ou ao menos um brilho da lua, e a profunda escuridão que sempre o cercava tirava toda a noção que poderia ter sobre o passar do tempo.
Mas isso também já não importava mais. Aquela cela cheirava morte, e tudo o que ele apreendia disso era de que também estava morto, não havia mais saída, não havia mais salvação. A morte estava ali na escuridão, ao seu lado, olhando, flertando com ele, desejando-o. Todo o seu mundo agora restringia-se àquela mísera cela, onde sua vida chegaria ao fim em pouco tempo. Não tinha mais desejos, ambições, aspirações, nenhum conhecimento, nenhum ideal, sequer tinha pensamentos. Era um toco de madeira aguardando para ser jogado na lareira e, na verdade, já até ansiava pelo fogo, pelo fim, pela morte.
Seu descanso enfim chegara ao fim.
A pequena porta de madeira, localizada na parede a frente dele, abriu-se lentamente, e a luz de uma vela, que entrou subitamente, quase o cegou, limpando aquela massa escura que o cobria e revelando todos os cantos da sua cela, o que acreditava ser sua nova e final morada. Um homenzinho baixo, quase um anão, vestido de uma cota de couro bruto, túnica e calças de tecido rústico, e um calçado velho, o olhava com astúcia, mostrando seus dentes podres em um sorriso de profundo prazer pelo sadismo que estava prestes a presenciar. Logo atrás dele entrou o carrasco, esse sim um homem alto, de forte compleição física, que teve que abaixar-se para passar pela soleira da diminuta porta. Também vestia-se toscamente, mas possuía um item a mais, uma espécie de touca de malha rustica cobria-lhe o rosto. Não deveria haver qualquer tipo de intimidade entre torturador e torturado.
– Está preparado para assumir suas heresias finalmente? – disse o homenzinho – Ou deseja experimentar mais um pouco de nossa calorosa persuasão? Seus terríveis pecados jamais serão perdoados, a não ser pela admissão de sua culpa e a resignação pelo mal que causou. O sofrimento pode ajudá-lo a chegar a esta iluminação, e por isso estamos aqui, somos nós os seus “salvadores”…
E sorriu largamente, ao ver o estado de sua vítima, percebendo que não haveria confissão de culpa naquela sessão, e que seus desejos sádicos seriam plenamente realizados. Aproximou o rosto ao do torturado, que pendia a frente abaixado, olhou em seus olhos e pronunciou as palavras protocolares.
– Você confessa seus pecados contra Deus, assume que agiu de forma herética e que é culpado perante a Igreja e seus semelhantes?
O pobre homem respirou forte puxando o ar até seus pulmões e balbuciou algo como “eu não sei” e o ar saiu todo de uma só vez da sua boca, ao que precisou sugar novamente uma grande quantidade de ar para balbuciar novamente um som que parecia com “não entendo… o quê?”. Junto com a luz da vela chegara também o seu desespero, e com a voz de sua nova companhia chegara a confusão. Seu corpo não respondia mais a seus estímulos, e até seus estímulos já não tinham mais a mesma consistência. A consciência era como o fluxo do mar, sumia e voltava em ondas, e mesmo quando estava consciente, era como se não sentisse nada, nem compreendesse o que estava acontecendo. Tudo era apenas um sonho ruim, algo sem sentido, incompreensível.
– Pode começar… – o baixinho agora se dirigia ao grandalhão.
O homem corpulento saiu de trás do homenzinho e dirigiu-se ao mecanismo às costas do torturado, que com os olhos semicerrados acompanhou o caminhar dele mais com o que ouvia do que com o que via. Com o acionamento de uma alavanca, as correntes começaram a ser puxadas e engolidas pela boca do aparelho, levantando o corpo da vítima e esticando seus braços e distendendo vagarosamente todos os músculos, de um punho a outro.
Apesar do corpo amortecido e anestesiado, esta dor sempre era capaz de tocar o seu mais íntimo e um grito de dor, que na verdade estava mais para um dissonante grasnado, saltou boca a fora, junto com mais uma gorfada de sangue e saliva. Voltou a sentir novamente cada um dos seus músculos, completamente estendidos e quase cedendo ao estresse que lhes estava sendo imposto.
Abriu os olhos subitamente.
– Confesse todos os seus pecados, aceite o perdão de Deus, e então seu tormento terá fim e sua alma poderá ser salva. – disse novamente o baixinho.
Nenhum som saía por sua boca, suas forças dissolviam-se em seu sofrimento. Como chegara ao extremo dos seus músculos, o mecanismo havia parado de engolir a corrente, no entanto ainda puxava, forçando a abertura dos braços e trazendo uma insuportável dor em toda a parte superior do corpo torturado, desde as mãos e principalmente os punhos, passando pelos antebraços, cotovelos, braços, ombros, chegando até o pescoço e nuca e todos os seus músculos que sobem até a cabeça ou descem em direção às pernas. Assim permaneceu durante algum tempo, o qual pareciam ser séculos, de dor e desespero.
A um sinal do homenzinho, o torturador grandalhão moveu a alavanca e travou a máquina onde estava. A dor diminuiu, mas não cessou, pois os músculos permaneceram estendidos ao seu máximo. No entanto isso não era uma boa notícia. O grandalhão seguiu então até uma parede em especial e selecionou um dos chicotes que lá estavam, um particularmente perverso, que possuía em cada ponta de cada filete de couro, um pedaço pequeno, mas afiado de ferro, e com ele começou uma série de dez chibatadas, que resultaram em mais sangue esparramado pela terra imunda abaixo deles.
Ao fim da série, o baixinho deu um passo à frente e novamente olhando nos olhos semicerrados do torturado, sorriu e disse:
– Não vê que estamos purgando sua podridão? Seu espírito estava entregue ao demônio, e nós estamos trazendo-o novamente a Deus. Suas heresias, seus pecados horrendos trouxeram-no até aqui, e com sua dor, seu sangue, você será novamente libertado de todo o mal. Assuma seus pecados, confesse sua vida imunda de heresias, e receberá o perdão de Deus.
Ele novamente balbuciou, cuspindo saliva e sangue, seu corpo torturado desejando o fim, a morte. Não raciocinava mais, apenas respondia a estímulos débeis, queria o fim, mas seu cérebro, quase transformado em um mingau, não conseguia discernir as palavras que deveriam ser ditas, só conseguia resmungar, balbuciar, grasnar. Era pouco mais que um animal selvagem agora.
O baixinho deu um passo para trás, voltando ao seu local de origem e demonstrando total deleite, acenou novamente ao carrasco, que imediatamente reiniciou uma nova série de dez chibatadas. Assim que sentiu o primeiro baque dos pequenos metais em sua lombar, todo o seu corpo entrou em um processo vigoroso de contrações e espasmos, os músculos restantes, que não estavam totalmente estendidos, vibravam e estremeciam, como se atingidos por um raio.
Os olhos do homenzinho brilhavam, era o ápice de seu deleite sádico, nada mais poderia chegar a um momento tão sublime de dor e desespero, e sentia esse prazer cruel correndo por todas as veias de seu corpo, apreciava o sentimento do torturado como se fosse um delicioso vinho.
– Chega.
A voz, grave e autoritária, vieira da escuridão atrás do homenzinho, pouco além da soleira da pequena porta. Subitamente o baixinho largou seu prazer sádico e voltou a seriedade de seu trabalho, como se ali estivesse forçado, infringindo a dor a outrem por necessidade e não por seu gozo pessoal, endireitou o corpo e acenou para o carrasco, que sequer precisava de seu sinal para enfim parar com a tortura, pois conhecia a voz que dera a ordem e sabia muito bem colocar-se em seu lugar.
– Solte-o.
Antes mesmo de um novo aceno do homenzinho, o carrasco já havia acionado a alavanca, destravando totalmente as correntes e libertando o corpo do torturado de sua crucificação suspensa. Ele caiu em um baque forte no chão e então descobriu que seus ossos e suas articulações estavam definhados e a dor resultante de sua queda na terra dura foi tanta quanto a dor que sentira pela distensão dos músculos, mas agora ao menos o corpo estava livre e se permitia sentir-se mais relaxado, então sabia que a tendência era melhorar. Sentiu novamente seu sangue circulando veloz pelas suas veias e um pequeno e fino fio de esperança trouxe cor à sua face. Mas nesse momento, ainda era apenas um toco de madeira aguardando para ser consumido pelo fogo.
– Limpem-no e alimentem-no e assim que tiver recomposto, tragam a nós para uma nova sessão de julgamento.
O homenzinho abaixou a cabeça em respeito à sua autoridade superior e acatando todas as suas ordens disse:
– Sim, meu senhor.
Um farfalhar de panos se ouviu quando a figura oculta na escuridão se virou rapidamente de saída, mas nada pode ser visto. O homenzinho se virou para aquele bolo de carne, sangue e podridão que estava esparramado pelo chão de terra e ordenou ao grandalhão que o levantasse e levasse para ser limpo. Antes de sair com o que restava do corpo do pecador, o torturador foi interrompido pelo baixinho que olhou novamente nos seus olhos.
– Aproveite esta nova chance que o benevolente Deus lhe concede e confesse seus pecados, senão nós nos veremos novamente e acredite, teremos novos brinquedinhos te esperando.
O torturado conseguiu abrir os olhos com um mísero resíduo de forças que sobraram de seu corpo destroçado e visualizou bem os contornos do rosto de seu algoz, e essa imagem permaneceu como uma pintura perfeita em seu subconsciente dali em diante.
Seu corpo não tinha forças, nada de energia nem alimento, o sangue já estava escasso e nenhum suor mais corria de seus poros. Só o que havia era uma pintura nítida de uma criatura terrível e horrenda na parede da sua mente.