O salão era amplo e luxuoso, como a sala do trono de um rei em um grande castelo. Tudo era muito limpo e brilhante, em completa oposição à imundície escura em que esteve alojado nos últimos dias de sua vida. As pessoas que se encontravam no salão trajavam vestes limpas de altíssimo corte, roupas de pessoas importantes e poderosas. Até mesmo os guardas vestiam-se meticulosamente, o que só ampliava a demonstração de imponência de seus senhores.
No meio do salão, em destaque, estava uma comprida mesa de madeira ricamente trabalhada e ornamentada com uma toalha tão brilhante e límpida que parecia ser tecida com fios de ouro, e era bem possível que o fosse de verdade. Sentados atrás da mesa, em confortáveis e majestosas cadeiras que pareciam tronos, estavam seus quatro inquisidores, juízes que julgariam o mérito de sua alma. Todos vestiam belíssimas túnicas pretas, mas apenas um exibia em sua cabeça um chapéu alto, que salientava sua alta patente episcopal, e atribuía-lhe visualmente o poder de seu cargo.
Já estivera ali antes, mais de uma vez, neste mesmo local, com esta mesma junta acusadora, e já o julgaram várias vezes como culpado por tudo o que se possa imaginar, coisas das quais ele nunca poderia assumir, e obrigavam-no a confessar pecados, crimes, heresias, que nunca praticara. Como nunca pôde assumir a autoria de tais acusações, sempre fora sentenciado à purgação do corpo e da alma, para que isso o levasse à revelação do mal que havia dentro de si mesmo, à compreensão do seu estado pecaminoso e enfim confessasse tudo de que o acusavam, e então assim receberia o pleno perdão de Deus e a compaixão da Santa Igreja, por eles representada. Por várias torturas passou e seu espírito sempre se manteve forte, negando sua culpa. Mas agora nada mais havia dentro de si, todo o homem que já fora um dia, toda a dignidade de ser humano que alguma vez já possuiu, se esvaíra totalmente. Não sabia mais o que era, não tinha mais consciência do que um dia vivera, só tinha a convicção de que era um pecador, e desejava suplicar o perdão divino por toda a podridão de seu espírito. Não tinha sequer mais lembrança de sua vida passada, não sabia o que fizera, a única verdade era que havia cometido heresias, pecado contra Deus e contra a Igreja e necessitava ardentemente pedir perdão.
A cela escura fedendo a sangue e morte ainda fazia parte de seus pesadelos diários. Era bem verdade que agora estava limpo, vestido, alimentado, seu vigor voltava a cada momento, mas as costelas quebradas, os ligamentos de seus braços soltos e seus pulsos mastigados pelo aço não o deixavam esquecer onde estivera passando seus últimos dias. A dor e o desespero ainda eram uma realidade e tocavam sua consciência a cada passo que dava, a cada movimento de seus braços. Não queria jamais voltar para onde estivera antes, e aquela pintura que seus olhos gravaram na parede do fundo de sua mente, o algoz horrendo e sádico, não o deixava esquecer o quanto era importante seguir qualquer caminho, que não fosse o de volta.
E então, subitamente, foi arrancado de seus devaneios deprimidos, pois no centro da mesa comprida, o inquisidor-mor, com seu singular chapéu, levantou-se da cadeira, empertigou-se e começou um discurso inflamado, dirigindo-se a seus companheiros:
– Caros senhores, estamos aqui reunidos neste dia de Nosso Senhor, para julgarmos os crimes contra a fé em Jesus Cristo e contra a Santa Madre Igreja, católica, apostólica e romana. Vivemos tempos difíceis em nosso querido mundo, heresias são distribuídas como perigosos modismos, afrontando a fé em Deus e desperdiçando todo o sofrimento pelo qual Nosso Senhor deu-nos a vida, em expiação por nossos pecados. Assim como a humanidade estava afundada nas mãos de Satanás quando Cristo trouxe-nos a verdade e a vida e nos libertou das correntes do pecado, agora novamente vivemos em outra era de escuridão, a nuvem negra do demônio novamente paira sobre nossas cabeças, e são muitas as pessoas que, pactuadas com Satanás, distribuem maldições sobre nosso rebanho, o povo de Deus, o qual temos o dever de proteger e salvar, não importando os meios para tal. Para isto, este comitê foi formado, por ordem e comando do Santo Padre, como um braço do Tribunal do Santo Ofício e hoje temos a feliz oportunidade de salvar várias almas que estavam perdidas, para a glória de Deus Pai, do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo – virou-se então para ele e continuou – iniciemos então com inquérito do senhor… – abaixou os olhos para o grande livro em sua frente e leu lentamente – Gilbert, Franz Gilbert.
Conhecia este nome de um passado muito distante, de outra época, de quando ainda era um homem, sem sofrimento, sem acusações, em paz. Era bom ouvir o seu nome novamente… mas agora não era mais nada, apenas uma casca seca e quebrada, um pecador, um indigno, e o que quer que tenha feito em sua época de homem, o levara até aqui, até este estado deplorável, então não poderia ser nada de bom. Seu desespero trouxe a lembrança de sua cela imunda e toda a dor que presenciou nela subitamente ascendeu sobre seus músculos e em sua mente uma grande luz se acendeu sobre a pintura no fundo de suas memórias. E agora tudo o que queria era o perdão de Deus e o fim de todo esse sofrimento.
O inquisidor continuou:
– O senhor Gilbert é acusado de traição e heresia contra os preceitos divinos de Jesus Cristo e da Santa Madre Igreja. Segundo sua própria esposa, que se ressalte, foi quem entregou-o para os braços misericordiosos da mãe Igreja, ele contestou por mais de uma vez o poder de cura pelo Espírito Santo, afirmando que seu filho enfermo deveria ser tratado com bruxaria e não através do amor e da intercessão de Deus Pai. Ela ainda afirma que seu marido deixava o leito matrimonial todas as noites para participar de orgias macabras em rituais satânicos, com a participação de bruxas nefastas e inclusive do próprio Satã em pessoa – neste momento todos os companheiros de mesa emitiram um sonoro “ohhhh” de espanto – isso é um indicativo que consta em nosso bendito manual Malleus Maleficarum, o “Martelo das bruxas” – e disse esta última referência em voz alta e dirigindo colericamente ao réu, com olhos faiscantes, e então baixou o tom da voz e falou normalmente – primeira parte, oitava questão.
Sim, é verdade, tivera uma esposa, e também quatro filhos, e uma vida feliz e harmoniosa, lembrava-se agora. Talvez não fora uma vida tão harmoniosa, se ele na verdade sempre fora um herege, que participava de orgias com bruxas e com o próprio demônio. Não conseguia recordar de ter tido parte em eventos como estes citados, no entanto sua memória estava muito fragmentada e não tinha certeza de nada, mas acreditava agora que poderia ter sido enfeitiçado por bruxas ou pelo próprio diabo, e por isso não lembrava de nada. Sim, foi isso que aconteceu, era óbvio, não fora sua culpa, fora possuído por estas entidades maléficas que o impuseram práticas blasfemas e profanas. Mas havia também seu filho, seu querido e amado filhinho, estava tão doente que tudo o que mais queria é que ele fosse tratado por algum curandeiro, alguém que pudesse fazer algo por ele, salvá-lo de sua enfermidade. Nunca soubera se ele havia encontrado a cura, se melhorara de seu estado debilitado, pois fora preso antes de algo acontecer. Oh meu Deus, que meu querido filhinho esteja bem. Se tivesse confiado em Deus e na Igreja, agora ele estaria bem, mas os feitiços malignos de Satã e suas bruxas o haviam cegado e ele se entregara ao mal e ao pecado.
– Meeeu… filho… – disse quase inconsciente do que fazia – por favor… digam-me o que aconteceu… – engoliu em seco e reformulou a pergunta – como está meu querido filhinho…
– O seu filho, senhor Gilbert, morreu com a peste que pegou, e tudo isso aconteceu por culpa de seus pecados, suas heresias, de sua perversão! Assim que abandonou Deus e a Igreja, assim que renegou o poder de Nosso Senhor, e conjurou Satanás ao lado de suas amigas bruxas, uma terrível maldição tomou conta de sua família, e seu filho foi tomado das mãos de sua esposa, arrancado do seio de sua família – e aumentando o tom de voz para uma acusação intimista – por sua culpa, pelo mal ao qual se entregou, pelo seu pecado!
Sem perceber, uma lágrima desceu suas bochechas e despencou no chão, seu corpo e sua alma agora estavam completamente destroçadas, não era mais um homem, não era mais um ser vivo, não era mais nada, apenas um toco de madeira aguardando ansiosamente o fogo da salvação. Estava agora completamente pronto para implorar pelo perdão de Deus.
– Franz Gilbert – disse o inquisidor ainda com a voz alta e acusadora – não há a menor sombra de dúvidas sobre sua vida pecaminosa diante dos fatos aqui comprovados, e dos testemunhos aqui descritos, e atestamos seus crimes contra Deus e a Santa Madre Igreja, pelos quais seu destino é o suplício eterno, Satanás o espera nos infernos, onde sua carne será rasgada todos os dias, sua pele sofrerá todos os tipos de queimaduras incessantemente, sua alma sofrerá horrores indizíveis durante toda a eternidade, pois este é o caminho que Satã prepara para os seus. O que tens a dizer sobre seus crimes aqui apontados e sobre o mal que sua alma espera?
Chorando e com a mente em uma espiral contínua e crescente de desespero, as palavras de Franz saíram como um desabafo, como uma súplica angustiada:
– Não fui eu que fiz tamanho pecado, agora eu sei, não fui eu. Na verdade, fui possuído pelos feitiços malignos das bruxas, uma espécie de encantamento que tomou minha mente e minha consciência e levou-me a fazer todos estes horrendos rituais, sem minha vontade e consentimento. Sim, aceito meus crimes e aceito minha culpa. Por minha maldade, que juro, me foi imposta por feitiços nefastos, perdi meu filho, que Deus o tenha… oh Senhor, que Deus o tenha… perdi também minha família, e perdi minha vida. Não mereço mais a felicidade.
O inquisidor-mor e todos os seus companheiros surpreenderam-se com a rapidez com que seu acusado assumiu sua culpa, geralmente haviam longas discussões, com necessidade de muitas acusações e reprimendas, mas ele deveria ter passado por muitas sessões de purgação, e seu corpo denunciava um estado lastimável, comprovando os suplícios pelo que já passara. E isto, para eles, só comprovava a eficácia deste método, que era capaz de arrancar o demônio do corpo das pessoas e iluminar suas almas para que compreendessem o estado pecaminoso e herético em que estavam envolvidos. Orgulhoso do resultado de mais uma alma limpa para a glória de Deus e da Igreja, o inquisidor olhou com compaixão e carinho para o réu e calmamente perguntou:
– Diante de sua sincera declaração, senhor Franz Gilbert, o senhor confessa seus pecados e assume sua culpa pelos crimes cometidos contra o Senhor teu Deus, contra o sacrifício de Jesus Cristo em sua sagrada Cruz, contra o poder e o amor do Espírito Santo de Deus e principalmente contra a autoridade da Santa Madre Igreja, católica, apostólica e romana?
A casca que seu corpo havia se tornado estremeceu. Sua consciência desejava este momento desde sua cela suja, estar ali e reconhecer seus pecados era o que o movia agora. Com esta convicção, a imagem de seu algoz, o rosto horrendo e feio que estava gravado no fundo de sua mente, agora escurecia e se tornava cada vez mais distante, o que trouxe alegria e alivio a seu combalido coração.
– Sim, confesso que pequei contra Deus, contra a Igreja, contra minha família, contra todos. Eu sou culpado por tudo.
A satisfação no rosto do inquisidor era perceptível, estava profundamente feliz e orgulhoso, salvara mais um pecador das mãos do diabo. Continuou, com uma voz compreensiva:
– O senhor aceita o perdão de Deus pelos seus pecados, a misericórdia de Jesus Cristo pelos seus delitos contra a fé?
O réu chorava copiosamente. Aquele toco de madeira, aquela casca vazia, aquele ser antes desprezível, ansiava pelo perdão de Deus e da Igreja, pela misericórdia por seus atos horrendos e deploráveis. De alguma forma, aquilo purificava sua alma de toda a podridão que sentia, o libertava da cela imunda e o trazia para o salão limpo e brilhante em que estava. Não haveriam mais pesadelos com a dor e a escuridão.
– Sim, aceito e suplico pela misericórdia de Deus e da Igreja. Só o que quero é ser perdoado e libertado de todo o mal que cobre meu corpo.
O inquisidor então sentou-se, fechou o livro que estava a sua frente e olhou para cada um de seus companheiros, que o encaravam respeitosamente. Ele era o líder, o comandante, o juiz maior deste tribunal, e todos lhe prestavam homenagens pelo seu poder, concedido diretamente pelo Santo Padre e por Deus. Consciente de sua superioridade sobre todos os que estavam ali naquele salão, o inquisidor-mor se dirigiu novamente ao acusado, com uma voz firme e resoluta, de quem não deixa margem para qualquer negociação.
– E por fim, senhor Franz Gilbert, aceita a punição que este tribunal lhe impõe para purgação final de todo o pecado que tomou conta de sua carne, de seu corpo herético, queimando-o na fogueira e purificando sua alma para que alcance a misericórdia e o amor divino na glória de Deus?
Tudo o que Franz queria, tudo o que mais profundamente ansiava, era o fim, acabar com tudo, nada mais de dor, de sofrimento, sem mais pesadelos, flagelos, torturas. Sua mente queria ser salva do inferno eterno e subir até a glória de Deus e compreendia agora que sua alma poderia ir, mas seu corpo não. Então como um toco de madeira, aceitou a fogueira.
– Eu aceito, para a glória de Deus e da Igreja.
Sentia-se finalmente livre. Tudo o que o preocupava, que perturbava sua mente, inquietava seu espírito, havia terminado. Estava feliz.
O inquisidor-mor, revestido de todo o seu poder, levantou-se novamente e, com imponência na voz, disse:
– Com o poder a mim concedido pela misericórdia de Deus e pela Santa Igreja, declaro que Franz Gilbert, culpado de transgressões e crimes contra a fé católica, e arrependido perante este tribunal e todos os sacerdotes que compõe esta mesa julgadora, foi perdoado de seus pecados e o sentencio a morte na fogueira, como purgação pela sua vida de heresias e perversões, entregando-o agora às mãos do poder secular que o executará no próximo Auto de Fé, a ser preparado pelo Estado e realizado após a Santa Missa no próximo domingo, ou seja, daqui a seis dias, a contar de hoje, na praça central da cidade.
O réu abaixou a cabeça, em total submissão à sentença a ele imposta. Mas estava feliz.
– Guardas, levem-no e entreguem-no aos guardas do rei. Senhor Franz Gilbert, que Deus tenha misericórdia de sua alma.
Olá Ivandro, com certeza você já está preparado para lançar seu primeiro livro, podes ter certeza que eu serei um dos compradores, seus textos são de fáceis assimilações, siga em frente e que Deus te ajude.
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Muito obrigado Leonilo! Que Deus sempre te ilumine também. Grande abraço.
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