Curitiba já era uma cidade grande e muito bem urbanizada, modelo de limpeza e mobilidade Brasil afora, mas a rua seis se localizava no bairro do Boqueirão, no sul da cidade, que era um bairro bastante populoso já nessa época, mas ainda estava começando a se urbanizar, e haviam terrenos baldios espalhados para toda a parte, que eram usados como campos de futebol improvisados. Cada time, cada turma, tinha o seu, e o “estádio” do Rua 6 F. C. ficava bem na frente da casa de Filipe, local da “fundação” do time. Em um passado não muito distante, era um campo grande, com grandes traves de madeira bem definidas e com marcação das linhas de jogo, mas hoje, com alguns proprietários reivindicando seus terrenos e construindo casas onde se situava um dos gols, o campo hoje não passava de um terreno aberto com chão de terra batida onde mal se poderia fazer um jogo com times de 4 jogadores de linha. Uma das traves grandes ainda permanecia, mas era usada apenas para treinamento de goleiro antes dos jogos principais, já que os jogos diários eram feitos apenas com golzinhos, que eram pequenas traves sem goleiros. Era tudo o que era possível fazer. E para complicar ainda mais, o terreno terminava em um grande declive coberto de mato baixo, carregado de mamonas e pico-pico (planta que liberava pequenas hastes pretas que se prendem em qualquer pedaço de roupa e era um pesadelo de se retirar), onde era impossível a prática futebolística, e geralmente era onde ia parar a bola a cada chute mais forte.
Mas apesar de todas as dificuldades, o campinho era onde a turma se reunia todos os dias para jogar futebol, e as partidas geralmente começavam logo depois do almoço, para terminar apenas nos últimos raios de sol.
Era final de tarde, os últimos raios de sol já estavam se esvaindo e a última partida já tinha terminado no campinho. Os garotos caminhavam até a esquina próxima da casa de Tiago, onde ficariam conversando até suas mães chamarem por estar tarde. Danilo se despediu antes e virou a esquina indo para sua casa, que ficava na rua paralela à Rua Seis e Bruno o seguiu, já que moravam na mesma rua. Filipe tinha ido mais cedo para casa, seus pais iriam visitar parentes e queriam que ele fosse junto. Sobraram na esquina apenas Tiago, Willian, Cleber e Matheus, que sentaram no morrinho que se formava na grama. Tiago foi o único a ficar em pé, seus olhos faiscavam.
– Caras, tô com uma vontade de comer mexerica. – disse.
– Ih, lá em casa só tem ponkan, mas tá tudo verde ainda. – falou Matheus.
– Mexerica boa só tem lá no convento, lá os pés tão carregados, é até bonito de ver… – disse inocentemente Willian.
Tiago abriu um sorriso no rosto enquanto olhava para todos, e o único a entender aquela expressão foi Cleber.
– Roubar mexerica no convento? Claro, por que não? As freiras nunca saem pra fora durante a noite, minha mãe me disse que elas se recolhem muito cedo e não costumam sair à noite. – deu uma gargalhada – É perfeito!
– Vocês não podem estar pensando em ir roubar o convento… – Matheus estava alarmado, sua família era muito católica, isso deveria ser um grave pecado.
– Não é roubo, elas nem comem mexerica, vai cair tudo e apodrecer no chão, vamos é estar fazendo uma obra de caridade, isso sim. – Tiago ponderou.
– Mas e se descobrirem? Meu pai me esfola… – Matheus estava com medo.
– Não quer ir, fique aqui então, a gente vai! – falou Cleber – Você vai Willian, ou tá com medinho também?
– Eu vou sim, tá de noite mesmo, não tem como as freiras nos pegarem, nem nos reconhecerem.
– Puta merda! – disse Matheus confuso – Tá bom, eu vou também, mas se qualquer coisa acontecer, sebo nas canelas em rapaziada?
– Deixe de ser medroso, nada vai acontecer – falou tranquilamente Tiago – vai ser rápido e depois a gente volta aqui pra comer.
– Então vamos de uma vez, antes que minha mãe me chame. – Matheus decidido começou a se dirigir rua acima, em direção ao convento.
Caminharam por cerca de duas quadras e meia para chegar até o convento, que ficava no final de uma rua sem saída. A rua terminava em um muro alto, tendo de um lado outro muro de tijolos cercando um terreno baldio e do outro lado uma cerca de varetas de ferro, onde ficava o convento. No terreno do convento havia um pequeno pomar com árvores frutíferas e ao lado uma horta maior com vários tipos de verduras. Por sorte, o pomar era grudado à cerca, sendo necessário apenas escalá-la para ter acesso às mexericas.
Os garotos chegaram andando nas pontas dos pés, investigando bem qualquer movimentação dentro do prédio do convento. Nada, tudo parecia tranquilo e calmo. As luzes estavam acessas, mas era pouco provável que qualquer uma das freiras aparecesse para vigiar as arvores. Ficaram todos mais tranquilos, mas continuaram falando apenas em sussurros.
– Dois sobem e dois ficam embaixo pra pegar as mexericas. – organizou Tiago – Quem vai subir?
– Eu subo! – disse Cleber empolgado.
– Sobe você também Willian, é maior e mais magro, vai ser melhor. – disse Tiago.
Os dois treparam na cerca de ferro, tomando cuidado com as ponteiras afiadas. Assim que chegaram lá em cima, começaram a jogar as frutas que colhiam para os dois embaixo. Entre uma fruta e outra, Matheus conferia se havia algum sinal de movimentação na entrada do convento. Por enquanto nada.
– Onde você vai piá? – Tiago gritou em um sussurro.
Matheus desviou a atenção para Cleber lá no alto da cerca passando as pernas pra ficar do lado de dentro do terreno.
– Vou alcançar aquela outra arvore ali, tem mais mexericas maduras lá. – Cleber se justificou.
– Não vai fazer merda hein. – Tiago conhecia muito bem o amigo pra saber das confusões que ele era capaz de criar.
– Deixa comigo. – Cleber o tranquilizou.
Matheus voltou sua atenção novamente ao convento, em sua vigia desesperada para que nada acontecesse, mas continuou recepcionando as mexericas que Willian jogava.
E foi neste instante que algo aconteceu. Tiago, por algum motivo que não conseguiu compreender – nem depois, mais tranquilo, relembrando tudo em casa – sentiu que havia algo na horta do convento, uma sensação esquisita, que nunca havia sentido, mas que tomou conta de todo o seu corpo. Nem sequer olhara para aquela direção em qualquer momento, nem estava preocupado com nada além das frutas que desciam jogadas por Cleber, mas foi uma sensação tão poderosa, e chegou tão furtivamente, que fez com que esquecesse por um momento as mexericas e fixasse o olhar um pouco além das árvores, na direção dos fundos da horta. A princípio não viu muita coisa no breu da noite, mas então, apertando mais os olhos, percebeu que a escuridão que havia naquele ponto estava muito mais fechada, mais negra, não era apenas o escuro, mas era como se fosse uma total falta de luz. A visão arrebatou toda a sua atenção e então, olhando por mais tempo, pôde perceber um formato humano, como se uma pessoa estivesse ali, em pé, voltada diretamente para a entrada do convento, como se estivesse vigiando a porta do prédio.
E então ele viu algo que deixou seu coração acelerado de medo: aquela criatura negra possuía dois olhos vermelhos, como chamas, e estavam cravados na entrada do convento. Algo de ruim e maligno exalava dele, como se fosse um ser de outro mundo, de um mundo completamente maléfico. Sentiu como se fosse uma criatura vinda diretamente do inferno.
– Mas que diabos é aquilo? – disse finalmente, sem sussurro, em uma voz alterada pelo medo que sentia em suas veias.
Matheus saiu de sua vigília e olhou para Cleber, pensando que ele havia feito algo perigoso novamente, mas ele estava apenas pendurado do lado de dentro da grade caçando as melhores mexericas. Então virou-se para Tiago, que o olhava completamente aterrorizado.
– O que? – perguntou.
– Lá, perto do muro, no final da horta… – Tiago apontou.
Mas Matheus não conseguiu ver nada e, um segundo depois a área foi clareada pela luz que saía da porta do convento. A porta estava aberta, e por ela saiam duas freiras acompanhadas do Padre Aurélio.
– Meu Deus caras, olha lá… – Matheus apontou para a movimentação na entrada do convento, mas Tiago não se mexeu, continuou olhando para o que quer que tivesse visto anteriormente.
Willian com um pulo já estava no chão, mas Cleber, como estava do lado de dentro da cerca não conseguiu sair tão rapidamente, e ao tentar pular por cima da cerca de uma vez só, prendeu a perna no galho da arvore e fez um estardalhaço, chamando a atenção do padre e das freiras.
– Mas quem está aí? – gritou o padre, já se dirigindo ao barulho.
As freiras ficaram assustadas e entraram novamente no convento.
Matheus sentiu um vento passando rápido em suas costas, como se algo ou alguém estivesse passado por eles voando, mas não viu nada a sua esquerda e virando-se para sua direita viu Tiago branco como uma folha de papel com uma expressão assustada, e pensando que o susto dele era por causa do padre, que estava correndo na direção deles gritou em um sussurro:
– Vamos, corre!!!
Acontece que a área da cerca onde estava o pomar era no final da rua sem saída, junto ao muro que a delimitava, e o portão de saída do convento ficava entre eles e o restante da rua. Correram, cada um preocupando-se com suas próprias pernas, desesperados para transporem a frente do portão antes do padre os interceptarem. Cleber, que saiu correndo assim que chegou ao chão, foi o último a passar pelo portão, escondendo o rosto e a um segundo de ser pego pelo padre.
– Voltem aqui seus trombadinhas… – gritou o padre Aurélio sem nenhuma esperança de ser atendido.
Os quatro correram, sem pensar em nada, escondendo seus rostos, em desesperada carreira. Só pararam para descansar quando viraram a esquina e saíram da vista do convento.
– Vocês viram? – disse Cleber, respirando pesadamente e rindo ao mesmo tempo – Foi por pouco…
– Eu falei que isso ia dar merda… – Matheus não estava vendo graça nenhuma no que aconteceu – espero que ele não tenha reconhecido a gente, senão eu tô ferrado.
– Fica tranquilo cara, ele não viu nada, senão tinha gritado nossos nomes – Cleber acalmou – foi divertido não foi? Fala a verdade…
– Foi demais… – Willian só conseguia rir.
Tiago no entanto estava sério. Estava sem fôlego e ainda estava com o rosto branco, mas agora parecia mais confuso do que assustado. Todos perceberam.
– O que foi Tiago? Você tá bem cara? – Matheus perguntou.
– Nossa, você tá branco… – Willian parou de rir.
– Tá machucado? – Cleber checou o corpo do amigo para ver se tinha algum sinal de sangue.
Tiago, como se tivesse acordando de um sonho, voltou ao normal e olhou para seus amigos.
– Não é nada caras, tô bem… é só que… – olhou na direção do convento, como se tivesse algo lá para se ver, mas estava fora de vista – não sei, acho que não foi nada.
Os garotos continuaram andando, não poderiam ficar ali por muito tempo, havia sempre a possibilidade de que o padre estivesse vindo atrás deles.
Tiago não queria contar aos colegas o que tinha visto. Nenhum deles viu nada, e parecia algo tão bobo, sem sentido, que não tinha coragem de contar para eles, era mais possível que rissem da cara dele. Ele era o líder, não podia se dar ao luxo de passar vergonha na frente deles.
– Você tinha visto algo na horta do convento, não é? O que era?
Tiago sorriu, mais por não saber como se portar do que por achar graça de algo. Não sabia se deveria contar o que viu, mas não tinha tempo para pensar se valia a pena ou não contar, então preferiu mentir.
– Era só um cachorro correndo, as freiras devem ter colocado ele lá pra cuidar das plantas.
– Tinha cachorro lá? Puxa caras, e vocês não me avisam? Eu lá com a bunda pendurada pro lado de dentro, podia ter me ferrado. – reclamou Cleber.
– Mas também, o que você tinha que passar pro lado de dentro? É louco? – Matheus criticou.
– Se a gente conseguiu essas mexericas grandes e maduras foi por que eu me arrisquei, aquele pé estava mais carregado, valia a pena.
– E se o cachorro tivesse mordido sua bunda? – gritou Matheus?
– Eu não vi nenhum cachorro. – disse Willian – Porque ele não latiu?
– É mesmo, não ouvi nenhum latido. – completou Cleber.
Todo mundo se virou subitamente para Tiago, que confuso respondeu:
– Sei lá caras, vai ver ele foi treinado para chegar de surdina…
Não era tão importante enfim, então todos esqueceram o assunto e assim que chegaram ao morro no gramado, se deliciaram com as mexericas que acabaram de surrupiar. Mexerica era uma fruta gostosa, mas mexerica roubada era melhor ainda.
Ficaram por um tempo comendo, eram muitas frutas, mas já estava bem escuro e tarde, era até possível que suas mães já estivessem atrás deles e Matheus, que sempre tinha muito medo das reprimendas da mãe e principalmente do pai, por ficar até muito tarde na rua, teve uma ideia para acelerar a despedida de todos:
– Caras, e se o padre Aurélio ainda estiver atrás de nós? Se ele passa por aqui nós estamos ferrados…
– É verdade, acho que é melhor irmos embora, tá tarde mesmo. – Willian concordou.
– Vamos sim. – Tiago disse, ainda muito sério.
Os garotos dividiram as mexericas restantes, e alegres despediram-se, e cada um seguiu para sua casa, feliz com sua conquista.
Tiago ficou para trás e foi para sua casa lentamente. Não conseguia distinguir se estava assustado, cansado, amedrontado, confuso, aterrorizado. Nunca tinha visto algo assim, nunca tinha se sentido como sentira-se naquele momento. Foi algo que tomou conta de todos os seus sentidos. E o que viu, meu Deus, o que viu foi algo que não sairia de sua mente tão cedo. Entrou em casa, sabia que teria pesadelos essa noite.
Gostei deste conto Ivandro, continue nesta linha que terás exito com certeza!
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Obrigado Leonilo!
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Muito bom marinho! Faz lembrar de bons momentos no passado. Bjusss
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Obrigado! Bons tempos… beijão!
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